Síndrome da escápula em ressalto: ensaio iconográfico

Descritores: Escápula; Doenças articulares/diagnóstico por imagem; Ombro.

Keywords: Scapula; Joint diseases/diagnostic imaging; Shoulder.

Resumo:
A síndrome da escápula em ressalto manifesta-se como uma crepitação audível ou palpável durante os movimentos de deslizamento da escápula sobre o gradil costal. Frequentemente percebida em atividades físicas ou profissionais, as suas causas podem ter origem na alteração morfológica da escápula e gradil costal, no desequilíbrio de forças da musculatura periescapular (discinesia) ou ainda em tumores ósseos ou de partes moles. O presente estudo revisou de forma ilustrativa as principais causas da síndrome da escápula em ressalto, exemplificadas por meio de uma coletânea de casos didáticos.

Abstract:
Snapping scapula syndrome manifests as an audible or palpable crackling during the sliding movements of the scapula over the rib cage, often perceived during physical or professional activities. It can be caused by morphological alteration of the scapula and rib cage, by an imbalance in periscapular musculature forces (dyskinesia), or by neoplasia (bone tumors or soft tissue tumors). In this pictorial essay, we review the main causes of snapping scapula syndrome, exemplified by a collection of didactic cases.

DEFINIÇÃO DA SÍNDROME E ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

A síndrome da escápula em ressalto é definida como um estalido audível e/ou palpável da escápula durante os movimentos na articulação escapulotorácica(1). Ela acomete mais pacientes jovens e ativos, os quais comumente referem história de dor por uso excessivo, durante movimentos rápidos do ombro ou durante atividades esportivas(2). Esses sintomas podem ter início insidioso, ocorrer após uma modificação no padrão de atividade física ou estar associados a trauma(3).


ANATOMIA E BIOMECÂNICA

A escápula é um osso plano e triangular que se encontra entre a segunda e a sétima costelas. Possui duas superfícies (ventral e dorsal), três bordas (superior, lateral e medial) e três ângulos (superomedial, inferomedial e lateral)(3–5).

A articulação entre a escápula e a caixa torácica é uma das mais incongruentes no corpo humano, pois não apresenta estruturas articulares verdadeiras, mas sim um complexo muscular ao seu redor, os quais são divididos em três camadas: superficial, intermediária e profunda. A camada superficial compreende os músculos trapézio e grande dorsal, que pode ser associada a uma bursa localizada entre o ângulo inferomedial e as fibras superficiais do músculo grande dorsal(3). A camada intermediária consiste nos músculos romboide maior, romboide menor e elevador da escápula. A bursa trapezoidal situa-se entre o músculo trapézio e a base da espinha escapular. A camada profunda consiste nos músculos serrátil anterior e subescapular e contém duas bursas: a infrasserrátil, localizada entre o músculo serrátil anterior e a caixa torácica, e a suprasserrátil, localizada entre os músculos serrátil anterior e subescapular(3).

A Figura 1 faz a demonstração de bursas e de suas respectivas relações anatômicas. O controle e o posicionamento adequado da escápula são fundamentais para o correto funcionamento da articulação glenoumeral. Durante o movimento normal do ombro, a escápula precisa estar devidamente alinhada em múltiplos planos de movimento, situação que depende de ações harmônicas e sincrônicas entre os diversos músculos escapulares. A escápula recebe diferentes combinações de forças exercidas pelos músculos que nela se inserem, produzindo movimentos de abdução, adução, elevação, depressão e rotação (Figuras 2 e 3). Há um padrão de arco de movimento entre a articulação glenoumeral e a articulação escapulotorácica, conhecido como ritmo escapuloumeral, o qual tem uma relação de 2:1. Para cada dois graus de movimento do úmero, a escápula se movimenta um grau(6) (Figura 4).
 


Figura 1. Representação esquemática da musculatura e bursas relacionadas à síndrome da escápula em ressalto.


Figura 2. Representação esquemática mostrando o vetor biomecânico da musculatura envolvida com a movimentação escapular. As porções mais superior e inferior do trapézio estão em coloração rosa e a porção central está translúcida, demarcada pelo tracejado.


Figura 3. Representação esquemática da movimentação da escápula demonstrando, da esquerda para a direita, respectivamente, os movimentos de abdução/adução, rotação e elevação/depressão.


Figura 4. Representação esquemática demonstrando o ritmo escapuloumeral de 2:1. Por exemplo, com a abdução do braço em 180°, 60° ocorrem pela rotação da escápula e 120° ocorrem pela rotação do úmero.




VARIAÇÕES ANATÔMICAS E DOENÇAS QUE PODEM CAUSAR A SÍNDROME

Ângulo superomedial da escápula e variações anatômicas


A articulação escapulotorácica é amortecida pelos músculos serrátil anterior, subescapular e pelas bursas(7). Os ângulos superior, inferior e a borda medial da escápula são relativamente menos protegidos por músculos e bursas subjacentes, e a borda superomedial e o polo inferior apresentam ampla variabilidade anatômica(4,7). Quando nenhuma deformidade óbvia é encontrada, deve-se procurar por variações anatômicas, como a curvatura anterior anômala do ângulo superior da escápula, que é considerada uma das principais causas da síndrome. O ângulo superomedial da escápula foi medido em peças anatômicas e variou entre 124° e 162° (144,34° ± 9,09°)(7); quando inferior a 142°, aumentam-se as chances de ressalto escapular(8). A mensuração desse ângulo é feita na superfície anterior da escápula, utilizando-se três pontos anatômicos de referência: o ângulo superior, a espinha e o ângulo inferior, conforme exemplificado nas Figuras 5 e 6. Uma projeção óssea no polo inferior é o segundo local mais comum para os sintomas(4) (Figura 7).
 


Figura 5. Representação esquemática da superfície costal da escápula direita mostrando a medição do ângulo superomedial ABC.


Figura 6. Paciente do sexo masculino, 42 anos, com quadro de dor intermitente na região escapular à esquerda, associada a estalos há 7 anos. Pratica natação, caminhada e bicicleta. RM da escápula esquerda, com cortes sagitais ponderados em T1 (A) e T2 com saturação de gordura (B), mostra redução do ângulo superomedial da escápula (122°) — as linhas pretas em A indicam como é realizada a medida do ângulo —, com redução do espaço entre o segundo arco costal e a borda superior da escápula. Leve edema muscular e tênue edema do segundo arco costal adjacente (seta em B).


Figura 7. Paciente do sexo masculino, 87 anos, com queixa de abaulamento na parede torácica posterolateral. Pratica natação. RM da escápula esquerda, com cortes axiais e aquisições ponderadas em T2 (A) e T1 com saturação de gordura pós-contraste (B), demonstra distensão líquida e realce parietal da bursa infrasserrátil (setas), com formação de nível líquido (seta em A), devido à projeção óssea no ângulo inferomedial da escápula mostrada na TC (seta em C).




Tubérculo de Luschka

É uma protuberância óssea em forma de gancho na borda superomedial da escápula, que pode reduzir o espaço entre a escápula e o gradil costal e ser fator predisponente para ressalto(7).

Discinesia da escápula, insuficiência do músculo serrátil anterior, lesão do nervo torácico longo

Discinesia escapular significa movimento, posicionamento ou função anormal da escápula durante a movimentação do ombro, sendo achado clínico comum. Pode ser causa ou consequência de muitas formas de dor no ombro e disfunção. Existem múltiplas causas de discinesia. As causas relacionadas às articulações incluem artrose acromioclavicular, instabilidade e distúrbio da articulação glenoumeral. As causas ósseas incluem cifose torácica, fratura clavicular não consolidada, encurtamento, rotação ou angulação clavicular. Causas neurológicas incluem paralisias dos nervos torácico longo, nervo espinhal acessório e radiculopatia cervical(9) (Figuras 8 e 9). Os mecanismos mais comuns envolvem desequilíbrios da musculatura intrínseca, com inflexibilidade ou inibição da ativação muscular normal(9). O ressalto pode estar presente nas discinesias, pois os movimentos anormais fazem com que as extremidades da escápula se aproximem do gradil costal. Independentemente da causa da discinesia, o resultado final na maioria dos casos é uma escápula em pronação, que não é favorável para a função ideal do ombro e resulta em espaço subacromial diminuído, com sintomas de impacto(9).
 


Figura 8. Criança do sexo feminino, 9 anos, com queixa de elevação da escápula direita há 1 mês, não relacionada a dor, traumas ou cirurgias. A: TC com reconstrução tridimensional do arcabouço ósseo mostra escápula alada à direita (seta). B: TC no plano axial com janela para partes moles revela denervação com atrofia e lipossubstituição do músculo serrátil anterior (seta), com o lado contralateral para comparação. Não havia indício de compressões extrínsecas no trajeto do nervo torácico longo.


Figura 9. Paciente do sexo feminino, 32 anos, com queixa de dor no ombro e assimetria escapular há 3 meses. Pratica corrida. RM das escápulas, no plano axial ponderado em T2 com saturação de gordura, mostra denervação com edema do serrátil anterior (seta), sem significativa atrofia. Trajeto do nervo torácico longo sem sinais de compressões extrínsecas.




Sequelas de fraturas da escápula e gradil costal

As sequelas de fraturas da escápula e gradil costal podem causar deformidades ósseas, levando a maior atrito entre as estruturas da articulação escapulotorácica(10).

Bursites

A bursite escapulotorácica pode ocorrer após um único insulto traumático, como resultado de movimentos repetitivos da articulação escapulotorácica ou por discinesia escapular. O movimento escapular anormal pode ser causado pelo uso excessivo da musculatura, pelo desequilíbrio muscular ou condições patológicas da articulação glenoumeral(3). Quando os músculos da face costal da escápula diminuem de tamanho, a escápula inclina-se para frente, aproximando-se do gradil costal, gerando atrito na parede torácica durante o movimento, causando inflamação no espaço escapulotorácico (bursite)(3) (Figuras 7 e 10).
 


Figura 10. Paciente do sexo feminino, 46 anos, em acompanhamento de osteocondroma há 8 anos e com dores constantes há 7 meses. TC da escápula com cortes coronal (A) e axial (B) demonstra osteocondroma pediculado no aspecto anterossuperior da escápula, em proximidade com o contorno posterior do primeiro e segundo arcos costais à esquerda (seta em A). Acentuada distensão líquida na região da bursa suprasserrátil (seta em B).




Tumores ósseos

Osteocondroma ou exostose é o tumor ósseo benigno primário mais comum da escápula, sendo geralmente solitário (90%) e podendo ser múltiplo na forma de exostose múltipla hereditária em cerca de 10%. É considerado alteração da placa de crescimento, deixando de aumentar de tamanho após a maturidade esquelética(11). Geralmente envolve a metáfise de ossos longos, e raramente a escápula (4–6%). Pode ser sintomático, principalmente devido ao seu efeito de massa, causar uma pseudoescápula alada, crepitação e alterar o movimento escapulotorácico. Pode também causar compressão neurovascular, fraturas, inflamação da bursa ou transformação maligna(11) (Figuras 10 a 12). O condrossarcoma escapular é raro, mas a escápula é o segundo local mais frequente de acometimento dessa doença, predominando em pacientes do sexo masculino com idade entre 40 e 70 anos(3,4).
 


Figura 11. Adolescente do sexo masculino, 14 anos, com queixa de abaulamento e desconforto na escápula esquerda há 6 meses. Pratica polo aquático. RM da escápula esquerda, com corte sagital e aquisição ponderada em T2 com saturação de gordura, revela osteocondroma com base no ângulo superomedial da escápula, com fina capa cartilaginosa, que se insinua para o espaço entre o primeiro e segundo arcos costais (seta). Edema da musculatura interposta entre o osteocondroma e o gradil costal, sugerindo atrito.


Figura 12. Paciente do sexo masculino, 18 anos, com dor no ombro direito. Estudo radiográfico demonstrou exostose de base larga no terço inferior do corpo escapular (fossa subescapular) (seta).




Elastofibromas

Tumor benigno de partes moles com crescimento lento e prevalência de até 24% nos idosos, é mais frequente em mulheres com idade entre 55 e 70 anos. Acredita-se que ocorra em reação a microtrauma repetitivo por fricção entre a escápula e a parede torácica. Geralmente, se localiza no polo inferior da escápula, profundamente aos músculos serrátil anterior e latíssimo dorsal. Pode se manifestar como aumento de volume subescapular ou infraescapular, desconforto ou dor moderada, crepitações, estalos ou bloqueio escapular(12) (Figuras 13 e 14).
 


Figura 13. Paciente do sexo masculino, 69 anos, com queixa de abaulamento, estalido e dor na região escapular esquerda há 90 dias. Pratica musculação. RM da escápula esquerda, com corte axial e ponderação em T1, mostra elastofibroma localizado profundamente ao músculo serrátil anterior, interposto entre o gradil costal e o ângulo inferior da escápula (seta).


Figura 14. Paciente do sexo masculino, 55 anos, com aumento de volume na região da escápula esquerda. O exame de ultrassonografia (A) mostra formação predominantemente hipoecogênica e heterogênea (seta), localizada entre a escápula e o gradil costal. Na TC (B) a formação apresenta densidade de partes moles e estrias fibrogordurosas de permeio, sendo bem definida sua localização entre o gradil costal e o ventre muscular do serrátil anterior, ao nível subescapular e infraescapular, compatível com elastofibroma dorsal.




CONCLUSÃO

A síndrome do ressalto escapular é rara, mas pode causar intensa dor e limitação funcional. Portanto, os achados de imagem devem ser prontamente reconhecidos. O presente ensaio iconográfico ilustrou as suas principais condições relacionadas por meio de exames de imagem.


REFERÊNCIAS

1. Morgado S, Antunes F. Síndrome de escápula crepitante. Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação. 2010;19:23–6.

2. Merolla G, Cerciello S, Paladini P, et al. Snapping scapula syndrome: current concepts review in conservative and surgical treatment. Muscles Ligaments Tendons J. 2013;3:80–90.

3. Lazar MA, Kwon YW, Rokito AS. Snapping scapula syndrome. J Bone Joint Surg Am. 2009;91:2251–62.

4. Kuhne M, Boniquit N, Ghodadra N, et al. The snapping scapula: diagnosis and treatment. Arthroscopy. 2009;25:1298–311.

5. Frank RM, Ramirez J, Chalmers PN, et al. Scapulothoracic anatomy and snapping scapula syndrome. Anat Res Int. 2013;2013:635628.

6. Scibek JS, Carcia CR. Assessment of scapulohumeral rhythm for scapular plane shoulder elevation using a modified digital inclinometer. World J Orthop. 2012;3:87–94.

7. Aggarwal A, Wahee P, Harjeet, et al. Variable osseous anatomy of costal surface of scapula and its implications in relation to snapping scapula syndrome. Surg Radiol Anat. 2011;33:135–40.

8. Mozes G, Bickels J, Ovadia D, et al. The use of three-dimensional computed tomography in evaluating snapping scapula syndrome. Orthopedics. 1999;22:1029–33.

9. Roche SJ, Funk L, Sciascia A, et al.. Scapular dyskinesis: the surgeon’s perspective. Shoulder Elbow. 2015;7:289–97.

10. Burn MB, McCulloch PC, Lintner DM, et al. Prevalence of scapular dyskinesis in overhead and nonoverhead athletes: a systematic review. Orthop J Sports Med. 2016;4:2325967115627608.

11. Jindal M. Delayed presentation of osteochondroma at superior angle of scapula – a case report. J Orthop Case Rep. 2016;6:32–4.

12. Britto AVO, Rosenfeld A, Yanaguizawa M, et al. Avaliação por imagem dos elastofibromas da cintura escapular. Rev Bras Reumatol. 2009;49:321–7.










1. Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-6672-6045
2. Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-0649-3662
3. Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-7107-2621
4. A.C.Camargo Cancer Center, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-0203-6376
5. Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-5210-3605
6. Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-4395-1159